Desde sempre que me lembro de o meu pai ter na cozinha, na banca, um alguidar para aproveitar água (higienização de alimentos ou águas de cozedura ou lavagem de loiça); na casa de banho, na zona do chuveiro, um balde para recolher água do banho; e, fora de casa, depósitos de recolha de águas pluviais em vários pontos. Práticas que vinham de trás, de décadas de uma memória de escassez e de poupança. E que eu, tantas vezes, em miúda, achava exageradas e descabidas.
Imagem: divulgação
Em que momento perdemos, enquanto sociedade, a consciência de que esse líquido se trata de um recurso valioso, escasso e essencial à vida? De toda a água doce existente no planeta Terra apenas podemos usar para consumo humano cerca de 1,2%. Ela está (omni)presente em tudo o que fazemos e consumimos, nos nossos hábitos quotidianos, no que bebemos e no que comemos.
Mas parece que, com as importantes conquistas do desenvolvimento, demos este “ouro azul” como garantido, seguro e de qualidade, e deixámos de ter noção do seu valor e da sua importância e só nos lembramos quando, de repente, somos confrontados com a sua ausência nas torneiras, nos leitos dos rios e ribeiras expostos, nas barragens, nos poços e furos...
Desde fevereiro enfrentamos, tal como o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) alertara, uma situação de seca, que se agravou com a recente onda de calor, e que não mostra sinais de mudança. Esta seca meteorológica (associada à não ocorrência de precipitação) exacerbou-se, de acordo com o índice PDSI (Palmer Drought Severity Index), em todo o território, com um aumento muito significativo da área em seca severa, estando agora grande parte do território (67,9%) nessa classe e 28,4% em seca extrema (MONITORIZAÇÃO DA SECA - IPMA).
São inegáveis as alterações climáticas e a vulnerabilidade do nosso país (e não só, é um problema global), sujeito a fenómenos cada vez mais frequentes, extensos e violentos. E a água, como afirmava Johan Rockstrom na sessão ‘The future of humanity on earth’, Nobel Week Dialogue, 2018 ‘Water Matters, “é a vítima número um da mudança climática. Ou por existir em excesso ou por ser escassa, e sempre na altura errada.”
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1“O índice PDSI (Palmer Drought Severity Index), foi desenvolvido por Palmer (1965) e implementado e calibrado para Portugal Continental (Pires, 2003). Este índice baseia-se no conceito do balanço da água tendo em conta dados da quantidade de precipitação, temperatura do ar e capacidade de água disponível no solo e permite detetar a ocorrência de períodos de seca classificando-os em termos de intensidade (fraca, moderada, severa e extrema). A distribuição percentual por classes do índice PDSI no território é a seguinte: normal: 0%; seca fraca: 0%; seca moderada: 3,7%; seca severa: 67,9%”; seca extrema: 28,4%
Um relatório da Convenção das Nações Unidas para o Combate à desertificação (UNCCD) aponta que as secas hidrológicas representaram 15% dos desastres naturais entre 1970 e 2020, provocando 650 mil vítimas fatais. O mesmo documento indica que mais de 2,3 mil milhões de pessoas não têm água suficiente no país ou região onde vivem para assegurar as suas necessidades básicas. Se nada for feito, três quartos da população mundial pode ser afetada pela falta de água.
E se, segundo as Nações Unidas, cada pessoa precisa de 110 litros de água por dia, e cada português, gasta, em média, 187 litros; precisamos de reduzir drasticamente este número, trabalhar a nossa eficiência hídrica e a sustentabilidade na utilização deste recurso.
A eficiência hídrica e a sustentabilidade deste recurso escasso e essencial à vida são fundamentais a vários níveis:
- É um imperativo ético, de justiça social: a sua gestão tem de garantir que todas as pessoas tenham acesso a água e dela possam usufruir. Importa salientar que os menos responsáveis pelas alterações climáticas são em geral os mais afetados pelas suas consequências nefastas (os mais pobres e as mulheres são de modo geral mais vulneráveis), acentuando-se e perpetuando-se uma assimetria já existente. De igual modo, é um problema intergeracional; é preciso ter em conta também o bem-estar e o futuro abundante das gerações futuras. Não pode ser um privilégio de alguns; É um direito de todos.
- É um imperativo ambiental: a água é um recurso limitado que é necessário proteger, conservar e gerir para garantir a sustentabilidade dos ecossistemas e dos serviços que estes proporcionam à sociedade em geral e para garantir a sustentabilidade de outros recursos intrinsecamente associados.
- É uma necessidade estratégica: trata-se de um recurso sem o qual não há vida; assegurar o aumento de disponibilidade da água é investir na Natureza e na sua capacidade autónoma de regeneração.
- É um fator de interesse económico: a água é um importante fator de produção; a sua gestão eficiente permite maior racionalidade dos investimentos; e, ao nível do consumidor, uma redução dos encargos. Além de penalizadora para a qualidade de vida, a escassez de água afeta a independência energética do exterior, a competitividade económica e o processo de descarbonização.
- É uma obrigação normativa, do ponto de vista nacional e comunitário.
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2 Citado em O uso da água em Portugal - Olhar, compreender e actuar com os protagonistas-chave, Fundação Calouste Gulbenkian, C- The Consumer Intelligence Lab, projecto de conhecimento Return On Ideas, Março 2020. 3 UNCCD/Science-Policy Interface (2019). Land Management and Drought Mitigation. Science-Policy Brief No: 6. September 2019. United Nations Convention to Combat Desertification (UNCCD), Bonn, Germany.
Importa, por isso, rever o nosso comportamento (coletivo e individual) e começar hoje mesmo a adotar pequenos gestos de poupança hídrica e de redução do seu consumo. Deixo-te alguns gestos simples e muito práticos, para, em função do teu contexto, poderes adaptar e aplicar ao teu dia a dia. Porque o planeta precisa de todos a dar (poupar!) o litro!
35 ideias para poupar água - 8 áreas de atuação
PREVENÇÃO
- Reparar fugas e torneiras a pingar.
- Manter em bom estado as tubagens; em caso de rebentamento, fechar a torneira de segurança e chamar um técnico.
- Não descartar pelo ralo ou na sanita óleos, restos de comida, cabelos, pelos, cotonetes, pensos, tampões, cotão, toalhitas, medicamentos; podem entupir as canalizações, contaminar e prejudicar o tratamento das águas residuais na ETAR. Colocar um contentor na casa de banho para evitar descargas de água desnecessárias e problemas nas estações de tratamento de águas residuais.
CASA DE BANHO
- Usar baldes na casa de banho para aproveitar a água que sai do chuveiro enquanto não aquece (pode depois ser reutilizada na cozinha, na limpeza, nas plantas, nas descargas,...).
- Usar um chuveiro eficiente com redutor de caudal permite passar, em média, de consumo de água de 13 litros por minuto (chuveiros tradicionais) para 6 litros por minuto.
- Reduzir o volume de cada descarga de autoclismo: se não tiver opção de meia descarga, colocar, por exemplo, uma garrafa com água ou outro objeto no depósito, já que 41% do uso doméstico da água acontece no funcionamento das casas de banho e 28% precisamente no autoclismo.
- Tomar menos duches e que sejam mais rápidos (duche 15 minutos = 180 litros; 5 minutos= 60 litros).
- Fechar a torneira enquanto se ensaboa, lava a loiça ou escova os dentes (torneira aberta = 14 litros; torneira fechada, usando um copo = 1 litro)
MÁQUINAS ROUPA E LOIÇA
- Escolher eletrodomésticos mais eficientes, do ponto de vista energético e hídrico, pode gerar poupanças de cerca de 51% do consumo de água, para o caso das máquina de lavar roupa, e de 41% de consumo, para o caso das máquinas de lavar loiça. Na escolha destes equipamentos, além da classe energética A+ ou superior, procurar máquinas cuja etiqueta indique um consumo de água anual médio inferior a 10000 litros por ano (máquinas de lavar roupa) e 2500 litros por ano (máquinas de lavar loiça).
- Encher com carga máxima a máquina de lavar roupa e de lavar loiça e escolher os programas eco, que demoram mais tempo, mas poupam água e energia.
- Dispensar a pré-lavagem; os programas de lavagem normal são eficazes e suficientemente potentes para deixarem as peças limpas.
- Se tiver de lavar roupa ou loiça à mão, utilize uma bacia, deixe de molho antes da lavagem e evite lavar com água corrente.
ALIMENTAÇÃO
(em colaboração com Joana Mendonça, nutricionista da Maria Granel)
- a influência das nossas escolhas alimentares
Considerando as três vertentes da pegada hídrica (pegada hídrica azul - água superficial e subterrânea utilizada (ex: regas); pegada hídrica verde - proveniente da precipitação; pegada hídrica cinza - associada à poluição da água após um processo de produção), alguns alimentos acarretam uma maior pegada hídrica do que outros, consoante a água utilizada no seu processo de produção - a “água que comemos”.
Aquilo que comemos pode perfazer mais de metade da nossa pegada hídrica. Uma das formas pelas quais podemos ter bastante impacto na preservação da água é através da alimentação..
Alimentos de origem animal
Os alimentos de origem animal apresentam, de uma forma geral, uma maior pegada hídrica. Isto deve-se, em grande parte, ao processo de produção de ração para alimentação dos mesmos - aplica-se, por exemplo, ao caso da carne de vaca, um dos alimentos com maior pegada hídrica. Por outro lado, no caso de alimentos como os produtos lácteos, o gasto de água encontra-se também fortemente associado aos gastos ao longo da sua cadeia de produção, pois a sua utilização está normalmente vinculada à garantia das condições sanitárias e de higiene necessárias. [4,5]
De facto, a pegada hídrica deste tipo de alimentos acaba por ser bastante superior à de alimentos de origem vegetal.
Fonte: Ferraz, A., Gonçalo, C., Serra, D., Carvalhosa, F. and Real, H., 2020. Água: A pegada hídrica no setor alimentar e as potenciais consequências futuras. Acta Portuguesa de Nutrição.
Alimentos Processados
A produção de alimentos processados/ultraprocessados (refrigerantes, batatas fritas, pizzas congeladas...) acaba por requerer mais água do que os produtos no seu estado "natural". Enquanto que nos últimos mencionados, a pegada hídrica é referente quase exclusivamente à água necessária para os cultivar, os alimentos processados requerem água adicional para os processos a que são sujeitos a nível industrial. [6]
Fonte: Ferraz, A., Gonçalo, C., Serra, D., Carvalhosa, F. and Real, H., 2020. Água: A pegada hídrica no setor alimentar e as potenciais consequências futuras. Acta Portuguesa de Nutrição.
Desperdício Alimentar
Considerando que todos os alimentos que chegam até nós tiveram um gasto de água associado, seja este maior ou menor, o desperdício dos mesmos significa também o desperdício dos recursos que foram investidos para os produzir e, como tal, também de água. Assim, adotar estratégias que permitam minimizar o desperdício alimentar pode contribuir para a poupança hídrica.
Como podemos, em 5 passos, poupar água através da alimentação?
1- Reduzir o consumo de carnes vermelhas;
2- Incluir algumas refeições de base vegetal ao longo da semana, com as leguminosas como fonte de proteína;
3- Evitar o consumo de alimentos ultraprocessados (bom para a nossa saúde e do planeta);
4- Reduzir o desperdício alimentar.
5- Aproveitar a água da lavagem de alimentos para regar as plantas, lavar o chão ou para descarga na sanita.
CONSUMO EM GERAL
- Repensar e reduzir o nosso consumo em geral. Pensar, na ida às compras, na “água virtual”, referente à água que é utilizada como matéria-prima essencial para a produção de quase tudo o que consumimos e usamos, como alimentos, roupa, automóveis, eletrodomésticos. Por exemplo, um simples café envolve o gasto de 140 litros de água; para confecionar apenas uma t-shirt, são necessários 2700 litros de água; um par de calças de ganga implica o gasto de 11 mil litros de água.
Fonte: Valor da Água - portaldaagua.pt
HORTAS E JARDIM
- Armazenar e regar com a água da chuva.
- Não regar as plantas em horários de maior calor (a água perde-se com o calor, por evaporação): regar de manhã cedo ou à noite.
- Em vez de mangueira, recorrer a um regador para regar as plantas, usando apenas a água necessária (regar com mangueira: 1 minuto = 18 litros 12 minutos = 216 litros).
- Optar por plantas naturais da região, mais adaptadas ao clima e que exigem menos água.
- Instalar uma rede de rega eficiente em todos os jardins e similares (por exemplo: sistemas gota a gota). Sensores de humidade no solo e de interrupção de rega na ocorrência de precipitação ajudam a regular a intensidade, evitando escoamento superficial para pavimentos ou sumidouros, que aumentam também o consumo de água desnecessário.
- Optar por coberturas dos solos ajardinados com soluções como casca de pinheiro, pedra rolada, brita ou jorra vulcânica, que conservam durante mais tempo a humidade no solo, reduzem a germinação e o desenvolvimento de plantas infestantes, promovem a estabilização da temperatura do solo, favorecendo o bom desenvolvimento das raízes e dos organismos do solo, e previnem a erosão e a compactação causada pela chuva intensa.
LAVAGEM DO CARRO
- Utilizar um balde com água para lavar o carro, em detrimento da mangueira e da água corrente.
- lavar o carro com a menor frequência possível.
FORA DE CASA – CIDADANIA E ATIVISMO
Será justo (e sustentável) esperar que sejam os cidadãos, por fecharem a torneira enquanto escovam os dentes ou por aproveitarem a água do banho que acumulam num balde, a salvar o país do stress hídrico? A pergunta é uma provocação e a resposta é obvia, não! Essa é apenas, como lembra Ana Serrão, da Associação Ambientalista Zero, “uma parte na contabilidade geral de um país cujas perdas na rede de abastecimento de água se contam, por si só, em centenas de milhões de metros cúbicos e que abraça novas culturas de regadio intensivo numa altura de óbvia escassez.” - Revista Gerador
O que podemos e devemos exigir das empresas e do poder político?
- legislação e regulação para a eficiência hídrica e para a sustentabilidade na utilização deste recurso.
- adoção de soluções eficazes para o problema das perdas de água registadas no sistema de abastecimento.
- investimento e promoção de campanhas de sensibilização e de literacia da população sobre a pegada hídrica, de forma a que se promovam melhores escolhas mais conscientes.
- intervenção multidisciplinar preventiva e ordenamento estratégico do território.
- pressão para adoção de sistemas de utilização de água mais eficientes, tirando partido das soluções, equipamentos e tecnologias inovadores.
- aposta na irrigação de precisão.
- promoção de variedades agrícolas mais adaptadas aos recursos hídricos que a região de produção consegue fornecer.
- aplicação dos esforços da Comunidade Europeia para a introdução de requisitos de eficiência hídrica e energética em torneiras e chuveiros produzidos na União Europeia.
- avaliação e melhoria da eficiência global dos edifícios, ponderando a reutilização ou reciclagem da água (por exemplo das águas cinzentas) e o recurso a origens alternativas (como a água da chuva).
Gota a gota. Junta a tua voz e os teus gestos a esta luta!
Artigo escrito pela nossa Eunice para o portal Do Bem.
Para saber mais sobre este assunto. Fontes utilizadas:
Dia Mundial da Água. Nações Unidas - ONU Portugal [Internet]. c2020 [citado 2020 Mar 5]. Disponível em: https://unric.org/pt/dia-mundial-da-agua
Food’s Big Water Footprint [Internet]. Water Footprint Calculator. 2022 [cited 25 March 2022]. Available from: https://www.watercalculator.org/footprint/foods-big-water-footprint/
Ferraz, A., Gonçalo, C., Serra, D., Carvalhosa, F. and Real, H., 2020. Água: A pegada hídrica no setor alimentar e as potenciais consequências futuras. Acta Portuguesa de Nutrição.
Hallström E, Carlsson-Kanyama A, Börjesson P. Environmental impact of dietary change: a systematic review. J Cleaner Prod 2015
Garzillo JMF, Poli VFS, Leite FHM, Steele EM, Machado PP, Louzada ML da C, et al. Ultra-processed food intake and diet carbon and water footprints: a national study in Brazil. Rev Saude Publica [Internet]. 2022 Feb 18 [cited 2022 Mar 25];56:6. Available from: /pmc/articles/PMC8859933/
Marston LT, Read QD, Brown SP, Muth MK. Reducing Water Scarcity by Reducing Food Loss and Waste. Front Sustain Food Syst. 2021 Apr 1;5:85
IPMA - Monitorização da Seca Meteorológica
Mapping green water scarcity under climate change: A case study of Portugal Paula Quinteiroa; Sandra Rafaelaa; Bruno Vicentea; Martinho Marta-Almeidab; Alfredo Rochab; Luís Arroja; Ana Cláudia Diasa.
Avaliação das Disponibilidades Hídricas Atuais e Futuras e Aplicação do Índice de Escassez WEI+ Rodrigo Proença de Oliveira - Bluefocus / Técnico – U.Lisboa
RASARP 2021 - Volume 1 - Caracterização do setor de águas e resíduos